A história que nos contam é a história que escolhem contar. Mas por que algumas das batalhas mais sangrentas e definidoras da humanidade foram varridas para debaixo do tapete do tempo?
A história não é uma tapeçaria completa e imutável. Ela é, na verdade, uma seleção de eventos que, muitas vezes, reflete a perspectiva de quem os narra. A tendência é que conflitos ocorridos no Ocidente ou que impactaram diretamente o desenvolvimento das potências atuais recebam maior atenção. Em contrapartida, outras carnificinas igualmente vastas — e, em alguns casos, até mais devastadoras — que moldaram civilizações e definiram o destino de milhões de pessoas permanecem na obscuridade. O leitor, então, é levado a refletir sobre quais narrativas históricas foram privilegiadas e quais foram negligenciadas. Este artigo mergulha nessas lacunas, revelando confrontos que redefinem o conceito de brutalidade e cujas lições são mais relevantes do que nunca.
Em um mundo onde a violência se manifesta em novos e velhos conflitos, é fundamental olhar para o passado com uma lente mais crítica. A seletividade da nossa memória coletiva, por vezes focada em eventos que ressoam mais perto de casa, pode nos cegar para os padrões universais de violência e para as profundas cicatrizes que a guerra deixa em todas as culturas. Ao desenterrar essas batalhas esquecidas, o artigo busca não apenas corrigir um desequilíbrio histórico, mas também oferecer uma perspectiva mais completa e sombria sobre a verdadeira natureza da história humana. Esses eventos, apesar de sua brutalidade, servem como um lembrete de que a capacidade humana para a destruição é tão vasta quanto a sua capacidade para a criação.
1. A Rebelião de An Lushan (755-763 d.C.): O Colapso de uma Dinastia
A Rebelião de An Lushan não foi apenas uma revolta; foi um dos conflitos mais mortais da história da humanidade. Muitas vezes ignorada nos currículos ocidentais, a guerra civil que dilacerou a China da dinastia Tang é um lembrete do quão eurocêntrica pode ser nossa visão do passado. O que começou como a insurreição de um general ambicioso transformou-se em um cataclismo de oito anos que ceifou a vida de milhões de pessoas. A guerra foi um reflexo de tensões internas e da fragilidade de um império que, à primeira vista, parecia inabalável.
An Lushan, um general de origem estrangeira com grande poder, se rebelou contra o imperador Xuanzong. Seu ataque inicial foi devastador e rapidamente capturou as capitais do império, Chang’an e Luoyang. A guerra que se seguiu foi uma espiral de violência, fome e colapso social. Estimativas de perdas populacionais chegam a 36 milhões de pessoas, baseadas em registros de censo da época. Embora a precisão desses números seja debatida, o consenso é que a rebelião causou um massacre sem precedentes. A dinastia Tang, que estava em seu auge, foi irremediavelmente enfraquecida e nunca mais recuperaria seu antigo esplendor. A rebelião marcou o início de um longo período de instabilidade na China.
2. O Cerco de Bagdá (1258): O Fim de uma Era Dourada
A destruição de Bagdá pelos mongóis, liderados por Hulagu Khan, em 1258, não foi simplesmente uma conquista militar. Foi um ato de aniquilação cultural deliberada que encerrou abruptamente a Era de Ouro Islâmica. O evento simboliza o choque brutal entre uma civilização no auge de seu intelecto e uma força militar implacável que não mostrava misericórdia. O impacto desse cerco ainda ressoa, causando um trauma cultural profundo em todo o mundo islâmico.
Em fevereiro de 1258, após um cerco de menos de duas semanas, as forças mongóis invadiram a capital do Califado Abássida. O que se seguiu foi uma orgia de destruição que durou semanas, com cidadãos sendo massacrados sem distinção de idade ou gênero. Estima-se que entre 200.000 e um milhão de pessoas foram mortas. O ato mais simbólico e trágico foi a destruição da Casa da Sabedoria, a Grande Biblioteca de Bagdá, que abrigava incontáveis obras de matemática, astronomia e medicina. Relatos da época afirmam que o rio Tigre ficou preto com a tinta dos livros atirados em suas águas, uma imagem poderosa da perda de conhecimento. A aniquilação de Bagdá criou um vácuo de poder e interrompeu o florescimento científico e cultural que a região vivia.

3. A Batalha do Lago Poyang (1363): A Maior Batalha Naval da História
Embora a Batalha de Lepanto e os confrontos da Segunda Guerra Mundial sejam mais famosos, a Batalha do Lago Poyang, na China, pode ter sido a maior batalha naval da história em número de combatentes. Seu esquecimento nos registros ocidentais é um exemplo de como a história naval é frequentemente dominada por narrativas da Europa e dos Estados Unidos. Esse conflito épico demonstra uma tática brilhante e engenhosidade que mudou o curso de uma dinastia.
Em 1363, a batalha ocorreu entre as forças rebeldes de Zhu Yuanzhang, o futuro fundador da dinastia Ming, e Chen Youliang, um poderoso líder rival. As frotas de ambos os lados eram colossais, e a de Chen, com seus enormes navios-torre, parecia invencível. Contudo, Zhu Yuanzhang, com uma força menor e mais ágil, utilizou táticas engenhosas. Ele enviou navios-fogo para destruir a frota inimiga, transformando a vantagem de Chen em uma armadilha mortal. A vitória decisiva de Zhu Yuanzhang resultou na aniquilação da frota de Chen, na morte de seu rival e foi crucial para a ascensão da dinastia Ming, que governaria a China por quase 300 anos.
4. A Guerra do Paraguai (1864-1870): O Genocídio Silenciado da América do Sul
Conhecida como a Guerra da Tríplice Aliança, a Guerra do Paraguai é um dos traumas mais profundos e mal resolvidos na história da América do Sul. O debate sobre a culpa, que oscila entre a megalomania do líder paraguaio Solano López e os interesses imperialistas de Brasil, Argentina e Uruguai, apoiados pela Grã-Bretanha, continua a ser um campo de batalha historiográfico. Este conflito resultou em uma tragédia humana de proporções genocidas, que ainda hoje define as relações diplomáticas da região.
A guerra resultou na morte de aproximadamente 60% a 70% da população total do Paraguai. A perda masculina foi ainda mais devastadora, com estimativas chegando a 90%. O país foi economicamente e demograficamente arrasado, perdendo vastos territórios. Para o Brasil, a guerra fortaleceu o exército como ator político, o que, ironicamente, contribuiria para a queda da monarquia anos depois. A memória do conflito permanece uma ferida aberta, influenciando as relações na região até hoje.

5. A Batalha de Towton (1461): O Dia Mais Sangrento da História Inglesa
Em um único dia, mais ingleses morreram na Batalha de Towton do que no primeiro dia da Batalha do Somme, um dos símbolos da carnificina da Primeira Guerra Mundial. A brutalidade do combate corpo a corpo medieval é frequentemente romantizada, mas as evidências arqueológicas de Towton contam uma história de pura selvageria e sofrimento. A batalha, que ocorreu durante a Guerra das Rosas, foi uma luta pelo poder que deixou uma marca indelével na história da Inglaterra.
Travada em um domingo de Ramos sob uma nevasca, a batalha envolveu cerca de 75.000 homens, lutando pelo trono da Inglaterra. As crônicas da época falam em 28.000 mortos em um único dia. Descobertas arqueológicas em valas comuns revelam uma violência extrema, incluindo crânios esmagados e múltiplos ferimentos de lâmina em um único indivíduo, além de execuções em massa após a batalha. A vitória da Casa de York em Towton foi decisiva, garantindo o trono para Eduardo IV e forçando a fuga de seus rivais da Casa de Lancaster. A batalha é um lembrete visceral da brutalidade das guerras civis dinásticas.
6. A Guerra de Kalinga (261 a.C.): A Batalha que Converteu um Imperador
Uma guerra pode ser tão terrivelmente violenta a ponto de causar uma transformação espiritual completa em seu conquistador? A Guerra de Kalinga é um dos raros exemplos na história onde a carnificina levou um imperador a renunciar à violência e a adotar uma filosofia de paz. O conflito é um lembrete de que, mesmo nas circunstâncias mais brutais, a compaixão pode surgir.
O imperador Ashoka, da dinastia Máuria, invadiu o reino de Kalinga (na costa leste da Índia) para expandir seu império. A resistência foi feroz, e os éditos de Ashoka, gravados em pedra, relatam a dimensão da tragédia: 100.000 soldados de Kalinga foram mortos, 150.000 foram deportados e um número ainda maior de civis pereceu. O massacre foi tão grande que, segundo a lenda, o rio Daya ficou vermelho com o sangue dos mortos. Horrorizado com a matança que ele mesmo ordenou, Ashoka converteu-se ao budismo e promoveu uma política de não-violência e justiça social em todo o seu vasto império. Seu legado, de conquistador a patrono da paz, é uma das mais notáveis reviravoltas da história antiga.
7. A Batalha de Salsu (612 d.C.): A Aniquilação de um Exército Imperial
A Batalha de Salsu é uma das maiores proezas de engenharia militar e astúcia tática da antiguidade. Nela, uma força drasticamente menor aniquilou um dos maiores exércitos já reunidos na história até então. A batalha é um pilar da identidade nacional coreana, mas infelizmente pouco conhecida fora da Ásia Oriental. O confronto é um exemplo de como a inteligência e a estratégia podem superar a superioridade numérica.
Durante a segunda campanha da Guerra Goguryeo-Sui, o imperador Yangdi da dinastia Sui chinesa enviou um exército colossal, estimado em mais de um milhão de homens, para invadir o reino coreano de Goguryeo. O general coreano Eulji Mundeok, fingindo uma série de retiradas, atraiu uma força de elite de 305.000 soldados chineses para uma armadilha no rio Salsu. Quando as tropas chinesas estavam no meio da travessia, Eulji Mundeok ordenou a liberação de uma barragem previamente construída, liberando uma torrente de água que afogou milhares. Os sobreviventes foram massacrados pela cavalaria de Goguryeo, e fontes antigas afirmam que apenas 2.700 dos 305.000 soldados chineses retornaram. A derrota catastrófica foi um dos principais fatores que levaram ao colapso da dinastia Sui.
8. A Batalha de Muye (c. 1046 a.C.): A Revolta dos Oprimidos
A Batalha de Muye é um poderoso lembrete de que a lealdade de um exército nunca é garantida, especialmente quando ele é composto por oprimidos. Este confronto antigo, onde a traição em massa decidiu o destino de uma das primeiras grandes dinastias da China, mostra como a insatisfação e a opressão podem ser armas mais poderosas do que qualquer espada.
O rei Wu de Zhou liderou uma aliança de estados rebeldes contra o tirânico rei Zhou da dinastia Shang. O exército Shang, embora numeroso, era em grande parte composto por escravos e prisioneiros de guerra ressentidos. Durante o confronto decisivo em Muye, grande parte das tropas de vanguarda de Shang simplesmente mudou de lado, virando suas armas contra seus próprios comandantes e permitindo que as forças de Zhou avançassem. A derrota e o subsequente suicídio do rei Shang marcaram o fim da dinastia Shang e o início da dinastia Zhou, que se tornaria a mais longa da história chinesa. A batalha foi imortalizada como um exemplo clássico do “Mandato do Céu”, a teoria de que governantes justos recebem o direito divino de governar.
A Perspectiva que a História Precisa
A história que conhecemos é uma edição curada de eventos. Lembrar dessas batalhas brutais e esquecidas não é um exercício de morbidade, mas uma necessidade intelectual. Elas nos ensinam que a crueldade humana não tem limites geográficos ou temporais e que impérios e civilizações podem ser varridos da existência em um piscar de olhos. Olhar para essas batalhas nos permite entender a escala da violência e a profundidade do trauma que a guerra causa, independentemente de onde ou quando ocorra.
A questão que permanece é: quais outras verdades inconvenientes estão enterradas em valas comuns ou perdidas em bibliotecas queimadas? Ao corrigir o nosso passado e dar a devida atenção a esses conflitos, nós nos armamos com uma perspectiva mais sóbria e crítica para entender a violência no presente. O que mais nós não sabemos? A resposta para essa pergunta pode mudar tudo.