Explore as semelhanças e diferenças entre as ditaduras do século XX e os regimes autoritários de hoje. Entenda como a tecnologia e novas táticas de controle moldam o autoritarismo moderno e quais lições a história nos oferece para defender a democracia.
Você já teve a sensação de que, por mais que o mundo mude, certas sombras do passado insistem em nos acompanhar? A história tem esse jeito curioso de se reinventar, e quando falamos sobre regimes de poder absoluto, essa capacidade de adaptação é ao mesmo tempo fascinante e assustadora. As ditaduras que marcaram o século XX com desfiles militares, censura escancarada e propaganda onipresente deixaram lições gravadas a ferro e fogo em nossa memória coletiva. Mas será que estamos realmente prestando atenção a essas lições?
Compreender o autoritarismo de hoje exige que olhemos para trás, não para encontrar respostas idênticas, mas para reconhecer padrões. O desejo por controle total e a supressão das liberdades individuais continuam sendo o motor desses regimes. A grande diferença é que as ferramentas mudaram. O barulho dos tanques nas ruas foi, em muitos lugares, substituído pelo silêncio dos algoritmos que monitoram nossas vidas, e a propaganda descarada deu lugar a uma teia complexa de desinformação que nos confunde e divide.
Neste artigo, vamos fazer uma viagem no tempo. Primeiro, vamos revisitar as características marcantes das ditaduras “clássicas” para entender sua lógica e seu impacto. Em seguida, mergulharemos no presente para decifrar como o autoritarismo se modernizou, utilizando a tecnologia e táticas psicológicas sofisticadas. O objetivo não é apenas comparar, mas extrair o conhecimento vital que a história nos oferece para que possamos proteger ativamente o bem mais precioso que temos: a democracia.
O Rosto Clássico da Ditadura: Força Bruta e Controle da Mente
Para entender o que mudou, precisamos primeiro firmar os pés no que conhecemos. As ditaduras do século XX, como os regimes fascistas e nazistas na Europa ou as diversas ditaduras militares que assolaram a América Latina, operavam com uma brutalidade visível e uma metodologia clara. Elas geralmente surgiam em momentos de grande instabilidade social, econômica ou política, apresentando-se como a única solução para o “caos“. Sua sustentação se baseava em pilares muito bem definidos e facilmente identificáveis. O primeiro era a centralização absoluta do poder. Não havia espaço para negociação ou debate; as decisões eram concentradas nas mãos de um único líder ou de uma pequena cúpula militar, que controlava os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário com mão de ferro.
A violência era a linguagem oficial para lidar com a oposição. A perseguição a qualquer um que ousasse pensar diferente era sistemática e cruel. Prisões arbitrárias, tortura e desaparecimentos forçados não eram exceções, mas sim uma política de Estado para aniquilar a dissidência e instalar o medo na população. O silêncio era a meta, e o terror, a ferramenta. Paralelamente, o controle sobre o que as pessoas liam, ouviam e assistiam era total. A censura prévia em jornais, rádios, programas de televisão e em todas as formas de expressão artística garantia que nenhuma ideia contrária ao regime pudesse florescer. A informação era uma via de mão única, cuidadosamente filtrada e distribuída pelo Estado para moldar a percepção da realidade.
Esse controle da narrativa era reforçado por uma máquina de propaganda incansável. O objetivo era construir uma imagem quase divina do líder, exaltar os feitos da nação e cultivar um patriotismo fervoroso e acrítico, conhecido como ufanismo. Através de discursos inflamados, desfiles grandiosos e da repetição exaustiva de slogans, criava-se uma sensação de unidade forçada. Nesse processo, adversários políticos não eram apenas derrotados; eram apagados da história, suas imagens removidas de fotografias e seus nomes riscados dos registros. O controle do passado era essencial para dominar o presente. A força física e o domínio absoluto dos meios de comunicação eram, portanto, a combinação que mantinha essas estruturas de pé.

O Ditador Moderno: Controle Sutil e Vigilância Digital
Se a ditadura clássica era um rolo compressor que esmagava tudo em seu caminho, a versão moderna se assemelha mais a um vírus de computador: é mais sutil, opera nos bastidores e, muitas vezes, é mais difícil de ser detectado antes que o dano seja generalizado. Os números atuais são um alerta vermelho para o mundo. Segundo dados do V-Dem Institute, um dos mais respeitados centros de pesquisa sobre democracia, em 2024, cerca de 72% da população mundial já vive sob regimes autoritários ou com fortes tendências autocráticas. Isso significa que quase três em cada quatro pessoas no planeta não desfrutam de uma democracia plena. Mas como esses novos regimes se instalam e operam?
Primeiramente, a tomada de poder raramente acontece com um golpe militar televisionado. A estratégia mais comum hoje é a erosão da democracia por dentro. Líderes são eleitos democraticamente e, uma vez no poder, utilizam a legitimidade do voto para, paradoxalmente, minar as próprias instituições que deveriam limitar seu poder. Eles atacam a independência do sistema judiciário, pressionam e desacreditam a imprensa livre, alteram as regras eleitorais a seu favor e promovem mudanças constitucionais para se perpetuarem no cargo. É um desmonte lento, gradual e que, para muitos, passa despercebido até ser tarde demais.
A tecnologia, que prometia ser uma ferramenta de libertação e conexão, tornou-se a principal aliada do autoritarismo no século XXI. Onde antes eram necessários espiões e informantes nas ruas, hoje existem sistemas de vigilância em massa. Câmeras com reconhecimento facial monitoram espaços públicos, a coleta massiva de dados pessoais permite traçar perfis detalhados de cada cidadão e o monitoramento de atividades online revela opiniões e conexões. O controle deixou de ser apenas público para invadir a esfera mais íntima da nossa vida privada, criando um efeito paralisante onde as pessoas passam a se policiar por medo de represálias digitais ou reais.
A propaganda também evoluiu. A censura direta ainda ocorre, mas a tática mais eficiente agora é inundar o ecossistema digital com ruído. Em vez de proibir uma notícia, os regimes modernos financiam “fazendas de trolls” e exércitos de bots para espalhar desinformação, teorias conspiratórias e narrativas paralelas. O objetivo não é mais apenas convencer as pessoas de uma única “verdade“, mas sim confundi-las a ponto de elas não saberem mais em que ou em quem acreditar. Essa estratégia polariza a sociedade, destrói a confiança no jornalismo sério e cria bolhas informacionais onde a mentira, repetida à exaustão, se solidifica como verdade para certos grupos. A confusão é a nova forma de controle.
Finalmente, o poder econômico é usado como uma arma estratégica. Internamente, a dependência de contratos com o governo ou a ameaça de perseguição fiscal são usadas para silenciar empresários e opositores. Externamente, o poderio econômico de grandes nações autoritárias é usado para influenciar outros países e normas globais. Nesse cenário, as gigantes da tecnologia, as “Big Techs“, se tornam um campo de batalha crucial. A forma como seus algoritmos promovem ou rebaixam conteúdos e as suas políticas de moderação podem tanto proteger a liberdade de expressão quanto silenciar vozes críticas, um fenômeno que a jornalista e vencedora do Nobel da Paz, Maria Ressa, descreveu como uma “morte por mil cortes” para a democracia.

Lições da História Para Não Repetirmos os Mesmos Erros
Analisar as semelhanças e diferenças entre as ditaduras de ontem e de hoje é muito mais do que um exercício intelectual. É uma ferramenta de sobrevivência para a democracia. A história nos deixou um manual de instruções sobre como o autoritarismo nasce, cresce e se consolida. Ignorá-lo é um luxo que não podemos nos permitir. A primeira e talvez mais importante lição é que a tirania raramente bate à porta anunciando seu nome. Ela chega disfarçada de salvadora, prometendo “ordem” contra o “caos”, “segurança” contra a “ameaça” ou a restauração de uma “glória perdida”. Por isso, é fundamental estarmos atentos aos primeiros sinais da erosão democrática: ataques constantes à imprensa, tentativas de politizar o judiciário e a criação de inimigos internos para unir a população contra um alvo comum.
A segunda lição fundamental é que nenhum ditador governa sozinho. O autoritarismo precisa de uma base de apoio, seja ela militar, econômica, política ou popular. No passado, a conivência ou o apoio ativo de setores da sociedade civil, de parte da elite econômica e da mídia foram cruciais para a ascensão e manutenção de regimes brutais. Isso nos ensina que a responsabilidade é coletiva. A neutralidade em tempos de crise moral acaba por favorecer o opressor. A força da sociedade civil organizada, do jornalismo investigativo e da mobilização popular foi, e continua sendo, o principal contrapeso ao poder absoluto.
A terceira e mais urgente lição é sobre o valor inestimável da memória e da informação livre. Os regimes autoritários prosperam no esquecimento e no silêncio. Eles reescrevem a história para apagar seus crimes e glorificar seus líderes. Manter viva a memória das vítimas da repressão, da tortura e da censura não é um ato de revanchismo, mas sim o mais poderoso antídoto para impedir que essas atrocidades se repitam. É por isso que a luta pela liberdade hoje transcende a defesa do voto. Ela se estende à batalha pela privacidade dos nossos dados, pela transparência dos algoritmos que moldam nossa visão de mundo e, principalmente, pela educação midiática que nos ensina a diferenciar fatos de ficção.
A Democracia Como um Exercício Diário
O cenário global, confirmado por relatórios de instituições como o International IDEA, mostra que a democracia está em um processo de declínio contínuo há vários anos. O número de autocracias já ultrapassou o de democracias no mundo, e a qualidade democrática tem se deteriorado mesmo em países considerados consolidados. As ferramentas de controle mudaram do chicote para o clique, mas o princípio fundamental permanece o mesmo: todo poder que não é vigiado, questionado e limitado tende a se tornar absoluto. A história nos ofereceu o diagnóstico e nos alertou sobre os sintomas. Cabe a cada um de nós, no nosso dia a dia, aplicar o remédio. A defesa da liberdade começa com as informações que escolhemos consumir e compartilhar, com o nosso apoio ao jornalismo independente e com a coragem de defender as instituições democráticas, mesmo quando elas são imperfeitas. A história nos deu o mapa; navegar neste novo e complexo território é a grande responsabilidade da nossa geração.