Os Bastidores do Pastor Silas Malafaia em ‘Apocalipse nos Trópicos’ da Netflix

Um palavrão, um gesto de ameaça no trânsito e uma crítica mordaz ao seu “ungido” que fugiu. Longe dos púlpitos e dos holofotes calculados, o que as cenas de Silas Malafaia no documentário ‘Apocalipse nos Trópicos’ revelam sobre o projeto de poder que seduziu parte do Brasil? O filme de Petra Costa, recém-lançado e já incendiando debates, vai além da política para expor a intimidade de um dos homens mais poderosos do país, em momentos que ele talvez preferisse esquecer.

Lançado em julho nos cinemas e disponibilizado mundialmente pela Netflix, “Apocalipse nos Trópicos” mergulha na ascensão do movimento evangélico e sua indissociável aliança com a extrema-direita brasileira. A cineasta Petra Costa, indicada ao Oscar por “Democracia em Vertigem”, elege o pastor Silas Malafaia como o fio condutor dessa jornada. O resultado é um retrato complexo que, ao dar voz ao pastor, acaba por desnudá-lo de maneiras inesperadas, expondo as fissuras em sua armadura de líder inabalável.

O Dono da Rua: Fúria e Poder no Asfalto Carioca

Uma das cenas mais reveladoras e comentadas do documentário captura Malafaia em um momento de absoluta trivialidade: dirigindo seu carro blindado pelo trânsito caótico do Rio de Janeiro. Ao ser fechado por um motoqueiro, a reação do pastor é visceral e destoa da imagem pública de guia espiritual. Visivelmente irritado, ele sugere que seus seguranças poderiam “dar um susto no rapaz”.

Este flagrante de fúria contida expõe um viés autoritário, a mentalidade de quem não aceita ser contrariado, seja no altar ou no asfalto. A cena, curta e impactante, funciona como uma poderosa metonímia: a demonstração de força e a sugestão de intimidação como métodos para se impor no espaço público. Para críticos, o momento cristaliza a essência do projeto de poder retratado no filme, onde a autoridade não admite questionamentos.

A Previsão Rachada: Do “Escolhido de Deus” ao Líder que Foge

O documentário não aponta uma “profecia” errada no sentido bíblico, mas algo talvez mais contundente: o fracasso de um projeto político messiânico. Malafaia é apresentado como um dos principais arquitetos da narrativa que transformou Jair Bolsonaro em um “escolhido de Deus”, legitimando sua ascensão ao poder com uma retórica que fundia fé e política. O pastor foi o fiador da campanha junto a um massivo eleitorado evangélico, vendendo a imagem de um líder destinado a salvar o Brasil.

No entanto, o filme expõe o desfecho agridoce dessa aposta. Em um depoimento surpreendente, o próprio Malafaia critica duramente a decisão de Bolsonaro de deixar o país após a derrota eleitoral em 2022. “Eu não concordei que ele foi embora para a América. Um líder fica, paga o preço, vá para a cadeia ou não”, afirma o pastor, chegando a comparar a atitude com a de seu adversário político, Luiz Inácio Lula da Silva. “Tá aí o Lula. Tudo estava indicando que ele iria para a cadeia. Ele fugiu? Não. Postura de um líder.”

Essa declaração, vinda de seu mais proeminente aliado, soa como o reconhecimento de uma falha fundamental no caráter do seu “ungido”. A “previsão” de um líder forte e inabalável, sustentada por anos no púlpito, ruiu diante da realidade política, e a câmera de Petra Costa estava lá para registrar a frustração do profeta.

Malafaia durante audiência pública na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado, Créditos: Wikimedia Commons

Implicações: A Câmera como Espelho e Raio-X

Ao dar protagonismo a Malafaia, “Apocalipse nos Trópicos” gera um debate complexo. O próprio pastor declarou ter se sentido enganado pela produção, acreditando se tratar de um documentário internacional neutro. Críticos, por outro lado, apontam que o filme acerta precisamente ao permitir que Malafaia se revele em suas próprias palavras e ações.

A obra expõe a chamada “Teologia do Domínio”, ideologia que defende a ocupação de todas as esferas de poder por cristãos para instaurar um governo segundo preceitos bíblicos. Ao mostrar o pastor em seu jatinho “Favor de Deus” ou pressionando políticos por cargos, o documentário materializa como essa teologia se traduz em um projeto de poder terreno, com interesses bem definidos.

O impacto da obra reverbera para além das bolhas políticas. Para o público evangélico, o filme pode servir como um convite à reflexão sobre os limites e os perigos da instrumentalização da fé. Para a sociedade em geral, funciona como um alerta sobre a fragilidade da democracia quando confrontada por movimentos que se julgam divinamente autorizados a impor sua visão de mundo.

A Fé no Divã: O Que Você Não Vê no Culto?

A aparição de Malafaia em “Apocalipse nos Trópicos” nos força a uma reflexão crucial: até que ponto conhecemos as figuras públicas que seguimos e admiramos? Os momentos de descuido, as reações impulsivas e as contradições expostas pela câmera oferecem um vislumbre raro do homem por trás do microfone. A pergunta que fica é: estamos dispostos a enxergar além da persona cuidadosamente construída?

O Apocalipse Não É o Fim, Mas a Revelação

Mais do que prever o fim dos tempos, “Apocalipse nos Trópicos” cumpre o sentido original da palavra grega apokálypsis: revelação. O documentário revela não apenas as engrenagens de um projeto político-religioso, mas também as vulnerabilidades, vaidades e fúrias de seu principal garoto-propaganda. A briga com o motoqueiro e a profecia política frustrada não são meros detalhes biográficos; são janelas para a alma de um movimento que redefiniu o Brasil. E essa, talvez, seja a revelação mais surpreendente de todas.

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