O mistério das rochas deslizantes

Pedras Deslizantes do Vale da Morte: Mistério Secular Finalmente Revelado pela Ciência

Imagine rochas de centenas de quilos deslizando por um lago seco e desértico, deixando rastros intrigantes sem qualquer intervenção humana ou animal aparente. Durante décadas, as “pedras deslizantes” da Racetrack Playa, no Vale da Morte, Califórnia, alimentaram teorias que iam desde campos magnéticos misteriosos até intervenções extraterrestres. Mas a ciência, com uma boa dose de paciência e tecnologia, finalmente desvendou esse fascinante mistério.

Por muito tempo, ninguém havia testemunhado o movimento dessas rochas. Os cientistas propunham diversas hipóteses, incluindo ventos fortes, camadas de gelo finas e lama escorregadia. O mistério começou a ser desvendado quando pesquisadores da Scripps Institution of Oceanography, da Universidade da Califórnia em San Diego, decidiram monitorar as pedras com GPS e câmeras time-lapse.

O Palco de um Mistério Geológico Incomum

No coração do árido e implacável Vale da Morte, Califórnia, um dos lugares mais quentes e secos da Terra, situa-se a Racetrack Playa. Este leito de lago seco (playa) é famoso não apenas por sua paisagem desoladora, mas por um fenômeno que intrigou cientistas e curiosos por décadas: as “pedras deslizantes” ou “sailing stones”. Rochas, algumas pesando centenas de quilos, aparecem com longos rastros atrás de si, sugerindo que se moveram por conta própria sobre a superfície plana da playa. Como isso seria possível sem intervenção humana, animal ou forças óbvias?

Rochas deslizantes | Akin Bilgic

Um Enigma que Desafiou Gerações de Cientistas

Por mais de meio século, o mistério das pedras deslizantes do Vale da Morte alimentou a imaginação popular e o debate científico. Os primeiros relatos e estudos sistemáticos datam de meados do século XX. Geólogos e entusiastas propuseram inúmeras teorias, desde as mais plausíveis, como ventos de furacão e inundações repentinas com lama escorregadia, até explicações mais exóticas, envolvendo campos magnéticos incomuns, vibrações sísmicas ou até mesmo brincadeiras de seres extraterrestres. A ausência de testemunhas oculares do movimento apenas adensava o mistério, tornando a Racetrack Playa um local de peregrinação para aqueles fascinados por enigmas naturais.

As primeiras investigações científicas focaram nas características dos rastros e na composição das rochas (principalmente dolomita das encostas próximas). Notou-se que os rastros eram geralmente longos e paralelos, com algumas curvas suaves, indicando um movimento lento e contínuo, ao invés de um deslocamento brusco. Teorias iniciais que envolviam apenas o vento foram consideradas insuficientes, pois mesmo os ventos mais fortes do deserto teriam dificuldade em mover as rochas maiores sobre uma superfície seca. A hipótese de uma fina camada de lama molhada ajudaria, mas ainda não explicava completamente a energia necessária para iniciar e sustentar o movimento.

A Ciência Entra em Campo: A Pesquisa que Desvendou o Segredo

O avanço tecnológico e a persistência científica foram cruciais para resolver o enigma. Em 2011, uma equipe de pesquisadores liderada por Richard D. Norris, da Scripps Institution of Oceanography, da Universidade da Califórnia em San Diego, e seu primo James M. Norris, engenheiro, iniciou um projeto ambicioso. Eles equiparam várias rochas com unidades de GPS personalizadas, capazes de registrar movimento a cada segundo, e instalaram uma estação meteorológica de alta resolução na Racetrack Playa. Além disso, câmeras time-lapse foram posicionadas para capturar qualquer evento. O projeto, apelidado de “Slithering Stones Project”, exigiu paciência, pois as condições para o movimento são raras.

Death Valley National Park | Adbar-Wikimedia Commons

A “Tempestade Perfeita”: As Condições Raras para o Deslizamento

Finalmente, em dezembro de 2013 e janeiro de 2014, os pesquisadores tiveram sua recompensa. Eles não apenas registraram o movimento das pedras com o GPS, mas também o testemunharam e filmaram. A chave, como publicado na revista científica PLOS ONE em 2014, é uma combinação rara e precisa de eventos:

  1. Inundação Leve: A playa precisa acumular uma fina camada de água, geralmente após chuvas ou derretimento de neve das montanhas circundantes. Essa camada deve ser profunda o suficiente para permitir a formação de gelo flutuante (cerca de 3-7 cm), mas rasa o bastante para que as rochas ainda fiquem expostas.
  2. Congelamento Noturno: Temperaturas noturnas precisam cair abaixo de zero, formando finas camadas de “gelo de janela” (windowpane ice) na superfície da água. Esse gelo é fino e quebradiço, mas suficientemente forte para manter sua integridade em grandes placas.
  3. Degelo Matinal e Ventos Leves: Com o nascer do sol, o gelo começa a derreter e a se fragmentar em grandes painéis flutuantes. Ventos leves a moderados (apenas 3-5 metros por segundo) começam a soprar sobre a vasta extensão da playa. Esses ventos empurram as grandes placas de gelo.
  4. O Empurrão Decisivo: As placas de gelo, agindo como velas ou balsas, colidem com as rochas. A força combinada de uma grande área de gelo sendo empurrada pelo vento é suficiente para superar o atrito e mover lentamente as rochas. As pedras deslizam a uma velocidade quase imperceptível de 2 a 6 metros por minuto, deixando seus característicos rastros na lama macia por baixo do gelo derretido.

Além do Vale da Morte: O que Este Fenômeno nos Ensina?

A solução para o mistério das pedras deslizantes é um belo exemplo de como processos geológicos aparentemente complexos podem ser explicados por uma interação delicada de fatores ambientais comuns, porém ocorrendo em uma sequência e intensidade muito específicas. Demonstra a importância da observação paciente e do uso de tecnologia na pesquisa científica. Além disso, ressalta como ambientes extremos como o Vale da Morte ainda guardam segredos e podem nos ensinar sobre a dinâmica da Terra.

O que antes era um dos grandes quebra-cabeças da geologia, inspirando especulações e lendas, hoje é uma prova da engenhosidade da natureza e da persistência da ciência. As pedras deslizantes do Vale da Morte continuam seu balé silencioso e esporádico, mas agora compreendemos os maestros invisíveis – água, gelo e vento – que regem este espetáculo natural. O mistério pode ter sido resolvido, mas o fascínio pela Racetrack Playa e seus viajantes de pedra permanece intacto.

(a) cacos de gelo ao redor de uma pedra recentemente movida; (b) vista da poça d’água formada no lago; (c) gelo acumulado na margem leste do lago; (d) pedra se move da esquerda para a direita, deixando um rastro cavado na lama. Crédito: richard d. Norris; james m. Norris; ralph d. Lorenz; jib ray; brian jackson; plos one

Fonte: Plos One

Leave a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Scroll to Top