Por Que o Mundo Esquece Alguns Genocídios?

Descubra a dança entre geopolítica e memória. Por que alguns genocídios são lembrados e outros esquecidos? Uma análise profunda sobre a seletividade histórica.


Há momentos na história que nos confrontam com a face mais sombria da humanidade. Fotografias antigas de pilhas de ossos e crianças esqueléticas em preto e branco são testemunhas mudas de um horror indizível, de tempos e lugares distintos, mas com a mesma história de dor. E, no entanto, a forma como a história decide lembrar esses eventos parece uma dança incômoda e seletiva. A questão central é: por que alguns desses crimes contra a humanidade ecoam em nossos livros e memoriais, enquanto outros se perdem em um silêncio quase ensurdecedor? A resposta para essa pergunta é complexa e desconfortável, revelando a frágil consciência global, a influência da geopolítica e os interesses econômicos que moldam nossa memória coletiva.

Enquanto testemunhamos conflitos e atrocidades em tempo real, uma guerra mais silenciosa é travada no campo da memória. O reconhecimento de um genocídio, o crime de todos os crimes, tornou-se uma moeda de troca política. De fato, é um peão no tabuleiro das relações internacionais. O que determina qual massacre recebe o status de genocídio e qual é relegado a uma nota de rodapé raramente é a escala da brutalidade, mas sim o cálculo político do presente. Essa seletividade levanta uma reflexão profunda sobre o nosso compromisso com a justiça e a verdade, e o leitor é convidado a questionar o que realmente molda a narrativa histórica.

A memória seletiva da dor nos força a confrontar uma verdade incômoda: a história nem sempre é escrita pelos fatos, mas sim pelas conveniências políticas do momento. É um lembrete de que o passado pode ser reinterpretado, negado ou glorificado, dependendo dos interesses atuais. A busca por um reconhecimento universal e imparcial para todos os genocídios é, portanto, mais do que uma questão acadêmica; é uma luta por justiça, por dignidade para as vítimas e por um futuro onde a barbárie não possa ser esquecida, reescrita ou convenientemente ignorada.

A Lógica Inconveniente do Reconhecimento

A geopolítica desempenha um papel crucial na decisão de quais massacres são lembrados. Nada ilustra melhor essa seletividade do que o tratamento contrastante dado ao Holodomor ucraniano e ao Genocídio Armênio. Após a invasão da Ucrânia em 2022, o reconhecimento do Holodomor — a grande fome de 1932-1933, que matou milhões de ucranianos — por diversos parlamentos ao redor do mundo, ganhou força. Essa onda de reconhecimento não é uma coincidência histórica, mas uma ferramenta geopolítica. Reconhecer o Holodomor hoje significa condenar a Rússia, traçando um paralelo que fortalece a narrativa ucraniana como vítima de agressão. Um embaixador ucraniano, por exemplo, observou que a guerra na Ucrânia trouxe uma “mudança de percepção”, mostrando como o presente reescreve o passado.

Enquanto isso, a busca por reconhecimento do Genocídio Armênio, o extermínio de até 1,5 milhão de armênios pelo Império Otomano a partir de 1915, segue um caminho árduo. A negação do Estado sucessor, a Turquia, transformou o reconhecimento em um tabu para muitas nações. A Turquia, um parceiro estratégico da OTAN, investiu milhões de dólares em lobby para suprimir a palavra “genocídio”. Países como os Estados Unidos e o Brasil evitam a palavra, tentando não ofender Ancara. A dissonância é gritante: a conveniência política acelera o reconhecimento de um genocídio, enquanto a inconveniência política freia o de outro.

A história dos hererós e namaquas na Namíbia é outro exemplo dessa seletividade. Considerado por muitos como o primeiro genocídio do século XX, o massacre de cerca de 80% do povo Hereró pelas forças coloniais alemãs entre 1904 e 1908 levou mais de um século para ser oficialmente reconhecido pela Alemanha. A demora ilustra a dificuldade de uma nação confrontar seu próprio passado, especialmente quando ele é tão brutal. A reparação histórica, nesse caso, só veio após décadas de pressão e ativismo, mostrando que a justiça não tem pressa, mas exige persistência.

O Silêncio sobre Outras Atrocidades

Além do drama armênio e da história dos Hereró, dezenas de outros massacres estão na penumbra do esquecimento global. Durante a guerra de independência de Bangladesh em 1971, por exemplo, o exército do Paquistão matou até 3 milhões de pessoas. Apesar da escala assustadora, o evento raramente é classificado como genocídio no discurso global, ofuscado por alianças da Guerra Fria e pela contínua negação do Paquistão. Da mesma forma, o terror do Khmer Vermelho no Camboja, que matou quase dois milhões de pessoas em quatro anos, recebeu uma resposta lenta e limitada da justiça internacional. O trauma profundo das vítimas e a falta de responsabilização para os líderes do regime permanecem.

A ignorância sobre um genocídio não é um ato passivo; é uma agressão contínua às vítimas e seus descendentes. O negacionismo não é apenas um resultado da ignorância, mas uma estratégia para desautorizar a razão e as instituições. Negar a realidade é uma forma de escapar de uma verdade incômoda, um mecanismo que permite que a semente do ódio floresça novamente. Essa dinâmica perigosa é um lembrete de que o esquecimento pode ser mais destrutivo do que a lembrança dolorosa.

Em Ruanda, onde cerca de 800 mil tutsis foram massacrados em 1994, as consequências do trauma ecoam através das gerações. A geração nascida após o genocídio luta contra a depressão e o trauma intergeracional, herdando a dor de seus pais. A sociedade ruandesa vive uma reconciliação frágil, onde sobreviventes e agressores são vizinhos. A introdução do ensino sobre o massacre no currículo nacional é um esforço para evitar a repetição, um ato de resistência contra o esquecimento.

A Nossa Missão: Manter a Memória Viva

Diante da memória seletiva do mundo, qual é o nosso papel? O primeiro passo é questionar. Por que sei tanto sobre um massacre e tão pouco sobre outro? Quem se beneficia do silêncio? A informação é a principal arma contra o negacionismo. Ler os relatos de sobreviventes, apoiar o trabalho de historiadores que desafiam narrativas oficiais e pressionar nossos representantes a adotarem uma postura baseada em fatos, e não em conveniência política, são atos de resistência essenciais.

O reconhecimento de um genocídio não serve apenas para honrar os mortos, mas para proteger os vivos. É um aviso, um lembrete da capacidade humana para a barbárie e uma barreira contra a repetição. Ao escolher lembrar de todos os genocídios, e não apenas dos politicamente convenientes, afirmamos o valor universal da vida humana. A questão final não é apenas sobre o que o mundo esqueceu, mas sobre o que nós escolheremos lembrar e defender.

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